A Ave Maria de Santa Tereza

Marina Morgan
3 min readAug 16, 2023

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A Ave Maria de Santa Tereza

A paróquia de Santa Teresa e Santa Teresinha, localizada no bairro de mesmo nome mas com outra grafia é uma das tantas igrejas católicas espalhadas pela capital mineira. Diferentemente da maioria, ao invés de badalar todas as horas com pesados sinos de cobre, a paróquia de Santa Tereza (o bairro) mantém-se em silêncio 23 horas por dia. Porém, cotidianamente, às 18h toca uma Ave Maria.

Não se sabe quando começou tal tradição, mas a Ave Maria das seis da tarde já se tornou parte de quem mora em Santa Tereza. De uma ponta à outra, entre as avenidas que limitam o território do reduto boêmio da zona leste de Belo Horizonte, todos aqueles que andam pelas ruas escutam por três minutos a música cantada em latim.

Os religiosos, responsáveis por colocá-la para tocar, a ouvem com deleite. Os fiéis, também. De dentro da paróquia, juntam as mãos em oração e pedem proteção à Nossa Senhora, balbuciando entre as preces os sons da já tão conhecida melodia.

Nos arredores da praça em frente à igreja, a Ave Maria é escutada pelos estudantes recém-saídos das aulas: a melodia se torna a trilha sonora dos “até amanhã”, dos pedidos feitos no balcão da lanchonete em frente à escola, dos beijos dos casais de adolescentes que se despedem e anseiam pelo encontro no dia seguinte. É ouvida também pelos taxistas em mudança de turno, quando aqueles que trabalham durante o dia dão lugar aos outros que vieram passar a madrugada na labuta. Já os garçons e garçonetes dos bares da vizinhança a escutam enquanto arrumam as mesas e recebem os clientes que chegam para mais uma cerveja — e que também escutam trechos da música por entre as conversas animadas de fim de expediente.

Os donos de cachorros que levam seus bichos para passear são tomados pelas notas musicais, assim como as pessoas que chegam ali para brincar com seus filhos, velotróis e carrinhos ou aqueles que vão fazer algum exercício físico na academia a céu aberto que também fica ao alcance da Ave Maria. Quem chega do serviço e passa pela rua da igreja, a mais movimentada do bairro, também tem os ouvidos invadidos pela canção.

Nas demais vias públicas, em algumas em alto e bom som e em outras nem tanto, a Ave Maria também é ouvida. O velho ateu a escuta com indiferença enquanto prepara seu chá e, com seus botões, concorda que a religião é o ópio do povo. A bailarina solitária, que há anos sofre com uma dor de cotovelo, chora ao escutá-la e reza com ainda mais fervor para que a santa mude a sua sina.

Um músico pretensioso, mesmo sabendo que todo santo dia a santa música ecoa por todos os cantos na mesma hora, reclama quando ela começa a atrapalhar os seus ensaios, enquanto outro, dos mais talentosos, escuta o uivo dos cães que começa junto às primeiras notas da Ave Maria e espera o fim destes para continuar a dedilhar seus instrumentos de corda. O hábil luthier que entende a beleza da composição aproveita o momento para afinar os instrumentos que está sempre construindo. De um lado o sanfoneiro pára o fole para escutá-la melhor, do outro o percussionista bate as baquetas com mais força para sobrepor à música sagrada o ritmo de seus tambores.

A excêntrica e genial professora universitária pensa como pode trazer esse fato tão curioso para suas aulas sobre paisagem sonora e o padeiro da padaria gourmet começa a preparar as massas que serão assadas na manhã seguinte. No prédio onde funciona a descolada produtora cultural os profissionais entendem que se findou, enfim, o horário de trabalho e começam a juntar os seus pertences. Aqueles que esperam o metrô olham ansiosos para seus relógios: por saberem que a Ave Maria toca sempre pontualmente, confirmam suas suspeitas e se afobam com o atraso do transporte.

Nos três minutos da Ave Maria, a vida acontece de diferentes formas em Santa Tereza. Quando a música acaba, aqueles que pararam para ouvi-la voltam aos seus afazeres e aqueles que mal a escutaram continuam nos seus. E a cronista, que ainda não tinha aparecido na história e há dias tentava pôr em palavras aquele acontecimento cotidiano, finalmente começa a escrever, ansiando por terminar seu texto nas 23 horas de silêncio que antecedem a Ave Maria do dia seguinte.

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